No desenvolvimento infantil, um momento muito importante e gratificante para pais e filhos ocorre quando a criança começa a ler.
Desde o processo de reconhecimento dos primeiros símbolos até o fechamento do ciclo de alfabetização, a criança percorre um importante e longo caminho. Ela constrói não somente uma habilidade de decodificação simbólica, mas aprimora-se e desenvolve-se em aspectos cognitivos, afetivos e sociais.
Todos sabem que ler é uma atividade importante para crianças e adultos. No mundo saturado de informações em que vivemos, as habilidades de leitura, e principalmente, de compreensão do que é lido parecem ainda mais fundamentais. Mas qual é exatamente o papel que a leitura exerce no desenvolvimento infantil?
Uma leitura da infância
Já que iremos refletir sobre a leitura, primeiramente é fundamental pensarmos sobre o nosso olhar sobre as crianças, ou seja, qual a “leitura” que nós, adultos, fazemos delas. Nos dias atuais, entendemos as crianças como seres em desenvolvimento, que enfrentam um processo de crescimento e que precisam de suporte e apoio dos adultos e do meio social para poderem se desenvolver de forma adequada. Esse olhar, ou essa leitura da infância é tão comum para nós, no século XXI, que já nos acostumamos a pensar a criança como um ser que é bastante diferente do adulto.
Porém, o que a história dos estudos sobre a infância nos revela é que em cada momento histórico, as crianças são compreendidas e olhadas de forma bastante diferente. Ou seja, a forma como compreendemos a infância em cada sociedade e em cada momento varia de acordo com as características culturais, políticas e sociais de cada um destes períodos. As crianças são hoje aqueles seres que imaginamos que um dia se tornarão adultos, e serão o futuro da sociedade, por exemplo.
Atualmente, há uma infinidade de estudos já consagrados na infância, no campo da Psicologia, da Pedagogia, da Medicina, dentre outros, que nos auxiliam a lidar com as crianças no sentido de favorecer seu desenvolvimento e proporcionar uma melhor qualidade de vida. A informação e o conhecimento sobre como a criança nasce e se desenvolve está bastante disponível e disseminado, até mesmo na mídia, por exemplo. Esse fato pode nos conduzir a uma impressão errônea de que basta, para nós adultos, conhecermos as teorias e orientações sobre a criança e aplica-las diretamente no nosso cotidiano. A partir do nosso tema da leitura, por exemplo, poderíamos pensar que basta saber que é importante ler para as crianças, e contar uma história todas as noites para os nossos filhos; apesar de essa ser uma atitude importante e às vezes muito enriquecedora para o desenvolvimento da leitura na criança, ela não garante, por si só, nenhum sucesso, e pode até ter alguns efeitos negativos, se isso virar uma obrigatoriedade, se a criança se sentir pressionada a ouvir ou compreender as histórias, por exemplo.
Esta situação ilustra que mesmo uma boa prática pode não ser bem-sucedida, se o adulto pensar esta prática como uma intervenção que ele planeja anteriormente, e realiza diretamente sob a criança, sem levar em consideração suas atitudes e interesses pessoais. O que é importante destacar é que no desenvolvimento da leitura, e em outros aspectos do desenvolvimento infantil, os adultos devem pensar em estratégias que estimulem mais a interação com a criança, do que a intervenção direta sob ela.
Nesse sentido, estudiosos importantes do desenvolvimento psicológico da criança, como
Piaget e Wallon, por exemplo, destacaram o papel das interações que a criança realiza ao longo da vida como um dos principais fatores do desenvolvimento. Piaget afirmava que a criança pode ser comparada a um pequeno cientista, pois desde que nasce ela procura ativamente compreender o mundo, interagindo com os objetos e pessoas à sua volta e retirando significações dessas experiências que contribuem para que ela construa suas estruturações cognitivas, organize os seus afetos e possa compreender a realidade que a cerca e construir conhecimento. Ou seja, temos que fazer uma leitura da criança como ser ativo, que aproveita o que a experiência tem para lhe oferecer, mas que também interage e transforma esta experiência.
Para podermos ajudar a criança em seu desenvolvimento, e no caso do nosso tema, despertar o interesse da criança pela leitura, é preciso tentar compreender a criança a partir do ponto de vista da própria infância. Geralmente enxergamos e interagimos com as crianças pensando nos adultos que um dia elas serão, porém esquecemos que a criança não vive sob essa responsabilidade, não pensa nisso o tempo todo, e será muito mais saudável se também puder viver pelo menos parte de sua própria infância sem compromissos com o futuro. Segundo Henri Wallon (1941/2010) médico neurologista francês que estudou a infância, é preciso romper com esta visão “adultocêntrica” da criança, um tipo de visão que concebe os interesses e necessidades da criança, a partir do ponto de vista do adulto.
A partir dessa reflexão, vamos pensar a importância da leitura para o desenvolvimento da criança a partir do modo como ela, em diferentes fases, interage com os livros, o mundo letrado e o meio simbólico em geral, procurando entender qual o significado para ela desta interação. Assim, antes mesmo de ler livros, a criança já lê o mundo, à sua maneira.
A criança que lê o mundo
Monteiro Lobato, o célebre autor de literatura infantil, dizia que “um país se
faz com homens e com livros”. Do mesmo modo, Lobato também afirmava que “obrigar alguém a ler um livro, mesmo que seja pelas melhores razões, só serve para vacinar o sujeito para sempre contra a leitura”.
Isso quer dizer que é preciso refletir sobre o modo como os livros são apresentados para as crianças. Para que o livro possa ser importante para o desenvolvimento, a criança precisa enxergar os livros, e a leitura de modo geral, como um objeto de conhecimento para ela.
As principais funções e habilidades cognitivas que a criança utiliza para ler não estão presentes desde o nascimento, e também não surgem espontaneamente com o desenrolar da idade. A função simbólica, a linguagem, a noção de tempo e de espaço, a atenção e a memória são alguns dos aspectos desenvolvidos na criança a partir das experiências que ela tem em contato com os objetos do mundo.
Esses aspectos que são essenciais na leitura começam a ser desenvolvidos desde o nascimento. Já nos primeiros meses de vida, o bebê aos poucos organiza a sua realidade, e começa a diferenciar objetos, tem reações emocionais nas suas experiências, e por volta do primeiro ano de vida, começa a utilizar os objetos como instrumentos para as suas atividades. Nessas experiências, temos o início da construção de imagens mentais que posteriormente vão contribuir para que a criança desenvolva a função simbólica.
Nos dois primeiros anos de vida, o bebê interage com o mundo a partir das suas ações e sensações. Então, nessa fase, há livros específicos para bebês que são manipuláveis, geralmente feitos de tecido e que exploram diferentes texturas, podendo ser um recurso interessante. Além disso, o contato com as imagens pode auxiliar o bebê a compreender os processos de representação, fazendo associações dessas imagens com os objetos reais. Aproximadamente por volta dos dois anos de idade, a criança já é capaz de diferenciar a coisa em si da imagem ou símbolo que a representa. A função simbólica torna a criança capaz de representar as coisas e também compreender que as imagens de uma história, por exemplo, simbolizam algo que não está ali, abrindo espaço para a imaginação da criança.
Especialistas em Educação consideram que nos primeiros anos de vida, o contato com livros e com as narrativas enriquecem as possibilidades da criança desenvolver o gosto pela leitura. Crianças que são apresentadas para este universo somente quando iniciam a vida escolar podem apresentar mais dificuldades de compreender a importância da leitura e de despertar o interesse por ela, porque elas podem associar a leitura somente a este ambiente mais formal (Vargas, 2009).
Dicas para incentivar a leitura na criança
Em geral, no senso comum, é frequente que a leitura infantil seja relacionada como um elemento auxiliar ao processo de alfabetização. Entretanto, isso não é totalmente verdadeiro, pois a leitura é um processo mais amplo que a própria alfabetização, e envolve uma série de recursos linguísticos de diferentes dimensões. A linguagem oral, as narrativas, as imagens são recursos muito importantes para que a criança se interesse pelo mundo da literatura. Principalmente para as crianças mais novos, esse apoio em diferentes linguagens é fundamental. Inclusive, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil valorizam a música, a oralidade, a contação de histórias e o uso de livros como recursos para que a criança desenvolva a linguagem. A alfabetização em si não é objetivo da Educação Infantil, e mesmo para crianças a partir dos 6 anos, que ingressam o Ensino Fundamental, a alfabetização deve envolver a aproximação com este domínio linguístico e o desenvolvimento da capacidade de realizar uma leitura reflexiva do mundo. Assim, os pais podem incentivar os filhos de muitas maneiras, não somente comprando livros ou lendo os que chegam da escola, mas adotando algumas atitudes, tais como:
- contar histórias de livros, conversando e interagindo com a criança;
- inventar histórias, e pedir que a criança participe;
- utilizar de recursos dramáticos, como fantoches ou convidar a criança para encenar a história;
- para crianças ainda não alfabetizadas, pedir que elas contem a história utilizando as imagens como referência, tentando produzir uma narrativa a partir dos recursos visuais;
- respeitar o ritmo de leitura das crianças, e também o seu interesse em cada momento. A leitura não deve ser um momento imposto, como um dever.
Um princípio importante, em todas as idades, é tentar criar uma situação na qual a criança possa ser livre para interagir com a leitura, para construir e interpretar a sua própria experiência. As emoções que a criança poderá relacionar com esta experiencia de ler são fundamentais para que ela desenvolva um vínculo positivo com a leitura.
Para isso, além de apresentar a leitura como algo lúdico, num contexto de brincadeira, é importante que os pais também vivenciem esta situação como algo prazeroso. Não basta dizer para a criança que ler é importante ou divertido, se os pais não conseguirem efetivamente se divertir nesse momento de ler e contar histórias para os filhos.
No Brasil, as avaliações sobre a Educação demonstram que as crianças têm dificuldades em desenvolver a competência leitora, que envolve a capacidade de refletir e interpretar um texto. Isso reforça a importância de que os elementos importantes para a leitura sejam apresentados e incentivados desde os primeiros anos do desenvolvimento.
Além disso, a leitura por prazer deve ser incentivada, acima de tudo. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Pádua, na Itália, em 2016, investigou a história educacional de homens europeus adultos, e demonstrou que nesta população, aqueles que tinham lido livros por prazer, não obrigatoriamente, até os 10 anos de idade, foram os que tiveram maiores índices educacionais e sucesso profissional.
Esses dados demonstram que a leitura, ao aliar arte e conhecimento, é uma atividade privilegiada para a formação e o desenvolvimento humano.
Ler para refletir sobre o mundo
A literatura pode ser compreendida a partir dos aspectos de construção e expressão artísticas, e também como forma de conhecimento. É também um momento no qual os aspectos da inteligência e da afetividade devem estar juntos, pois ler deve ser um prazer que auxilia a aprendizagem na criança.
A partir dessas questões apresentadas, eu e o Marcelo Accarini, artista plástico, desenvolvemos um projeto para a criação de um livro infantil que pudesse contemplar essas questões tão importantes sobre o papel da literatura no desenvolvimento da criança.
Nosso livro, intitulado “Histórias fantásticas do meu travesseiro: o sumiço do tempo” tem como objetivo ser um livro destinado à crianças e adultos, para despertar reflexões sobre o tempo.
O “sumiço do tempo”, que é o subtítulo deste livro, tem a proposta de refletir a respeito de como utilizamos nosso tempo na vida moderna. Tanto adultos quanto crianças têm a agenda lotada de compromissos e afazeres, e muitas vezes falta tempo para simplesmente parar para ler um bom livro juntos, por exemplo.
O enredo gira em torno de um menino, que ao adentrar o mundo de seus próprios sonhos, encontra o Dani, seu alter ego. Juntos, Dani e o menino mergulham numa aventura para encontrar o Tempo, personagem perdido em muitas e muitas histórias. Dona Pressa e Dona Saudade auxiliam nesta jornada, compartilhando suas próprias experiências com o Tempo.
O livro transmite uma mensagem aberta, uma oportunidade de reflexão individual e em vários níveis. Assim, ele pode ser lido e interpretado por pessoas de diferentes idades. Tanto para adultos como para crianças, ele pode ser considerado um livro educativo, mas que não contém uma lição fechada ou determinada. O livro é simplesmente um convite para pensar o que fazemos com o nosso tempo.
Para conhecer mais e adquirir nosso livro, acessem nossa página no facebook: histórias fantásticas do meu travesseiro, ou www.polobooks.com.br.
A leitura é um elemento rico e importante para o desenvolvimento da criança em seus mais diversos aspectos. Ela favorece o desenvolvimento intelectual e afetivo, a imaginação e o lúdico, além de conferir a criança um verdadeiro passaporte para o patrimônio cultural da humanidade. Os pais têm a importante função de estimular a leitura de mundo da criança desde as suas primeiras interações, e devem fazer disso uma experiência prazerosa e interessante para adultos e crianças. Assim, ler, crescer e aprender se tornam um prazer!
Referências:
Brunello, G. et al. Books are forever: Early Life Conditions, Education and Lifetime Earnings in Europe. The economic Journal, 127, 2016.
Piaget, Jean. A representação do mundo na criança. 1926 Ed Record
Vargas, Roberta. Desenvolvimento do gosto pela leitura na primeira infância: projetos escolares. Monografia, UnB, 2009.
Wallon, Henri. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Original publicado em 1941.